“HOJE”. A placa com estas letras bem grandes ficava instalada na rua principal da cidade. Abaixo, um cartaz com a programação do filme que seria exibido na sessão noturna daquele dia no Cine Brasil. Lembro-me perfeitamente do “Hoje”, mas, ao vasculhar a memória, não encontro nenhuma imagem afixada abaixo daquele letreiro, que depois também o tempo apagou… A placa ficava na parede da frente da loja de minha tia avó Elza Baesso, na Rua do Comércio, a principal de Guarani.
E era ela também, minha tia, uma espécie de diretora ou talvez gerente do cinema, que concedia o “passaporte” para muitos dos meus antepassados “viajarem” no escurinho daquela sala imensa para assistir a filmes durante anos até que as luzes se apagassem, as cadeiras fossem retiradas, o lugar virasse fábrica e fechasse as portas… Com o fim da fábrica e sem virar igreja (destino de muitos), o prédio se mantém para rasgar os corações de saudade dos guaranienses que viveram os seus dias de glória, enquanto os das gerações seguintes só ouviam histórias e os mais jovens nem isso. O edifício que vai perdendo a identidade cada dia torna-se mais silencioso e invisível…De lá não saem mais histórias, romances, namoros….
Não pude assistir aos filmes naquele cine Brasil. Era muito pequena quando a cortina se fechou. Lembro-me apenas de cenas de uma matinê do desenho “Branca de Neve”… – a maçã, a bruxa caindo de um despenhadeiro, a mão no rosto para não ver a telona, morrendo de medo daquela malvada -, mas ouvi belas histórias. Minha tia Elza na bilheteria, meu tio Ítalo na portaria, meu pai na cabine de projeção…. Na tela, Gregory Peck, Anthony Quinn, David Niven estrelando em “Os Canhões de Navarone”. Apesar de o filme ter sido lançado em 1961, quando eu ainda não era nascida, mais de uma década e meia depois, lembro-me de meu pai contando ao meu irmão cenas daquele clássico de guerra que continuava sendo exibido. O que seria Navarone? Muitos anos mais tarde soube, enfim: era uma ilha grega onde ocorreu importante confronto da Segunda Guerra Mundial.
Pelo que contavam, as idas ao cinema eram um evento. A minha tia Elza sempre exigente, tentando manter a ordem, enquanto os mais jovens viam ali momentos de diversão e prazer. Em um dos filmes – talvez algum leitor identifique – havia uma cena em que a rainha Maria Antonieta olhava para trás antes de ser executada na guilhotina. Prato cheio para que os projecionistas dentro da cabine de onde vinha aquela “misteriosa” luz dessem um jeito de fazer alguma brincadeira. Dito e feito. Na hora da primeira exibição, enquanto a rainha caminhava para a guilhotina, meu pai solta um grito lá de trás: “Maria Antonieta!!!!!”. E a atriz na telona vira a cabeça, olha e volta a caminhar… Claro que o público explodiu em gargalhadas e depois indignação, e meu pai levou uma bronca danada… Não sei se foi exatamente assim, mas é o que guardo no meu baú de memórias sobre aquele lugar.
Com o apagar das luzes no Cine Brasil, só nos restava, quando crianças, assistirmos “Os Trapalhões”, quando vínhamos a Juiz de Fora, nas férias. Era passagem certa pelo Cine Excelsior. Pipoca na mão, corríamos para dentro daquela sala suntuosa, onde o teto nos arrebatava. Anos depois, em 1989, mudei-me para Juiz de Fora. No mesmo Excelsior, assisti vários filmes, dentre eles, o longuíssimo e inesquecível “Dança com Lobos”, de 1990, com Kevin Costner.
No ano seguinte, 1991, debulhei-me em choro com Robert de Niro e Robin Williams em “Tempo de Despertar”. Quando fui assistir, a exibição já estava no pequeno Cine Festival, uma sala anexa, no segundo andar do pomposo Cine-Theatro Central. Filme tão lindo e triste não deveria ser apresentado assim em salas pequenas onde a emoção precisa ser contida para não atrapalhar a plateia.
Ainda nos anos 1990, já estudante de jornalismo, guardo uma memória saudosista do Cine Paraíso, na Rua São Mateus, onde pude me apaixonar por Pagu, a jornalista e escritora Patrícia Rehder Galvão, personagem interpretado por Carla Camurati. O filme “Eternamente Pagu”, de 1988, estava sendo exibido anos mais tarde naquela sala onde o público podia se deliciar com produções que estavam fora do circuito comercial, os chamados cults.
Claro que trago ainda memórias de “Titanic”, megaprodução com uma das maiores bilheterias da história, que chegou ao Brasil em 1998. Assisti pelo menos três vezes ao filme, que fazia o público enfrentar uma fila de virar a esquina para entrar no Cine Veneza, na Avenida Rio Branco. Quanta saudade!!!! Aliás, como frequentei o Veneza. Ele ficava próximo de onde eu morava com meus irmãos, na Rua Braz Bernardino. Estudantes que éramos, aproveitávamos a bilheteria mais barata nas noites de quarta-feira para nos acomodarmos nas poltronas e ver tudo que estivesse em cartaz: “Independence Day”, “The Doors”, “Edward Mãos de Tesoura”, “La Bamba”, “Aracnofobia”, “A Bruxa de Blair”… Em março de 2000, o Veneza encerrou suas exibições, e as histórias dos cinemas de rua foram ficando cada vez mais escassas.
Em 2010 – numa atitude de resistência, porque os cinemas dos shoppings já dominavam a cidade – tentei assistir com meu marido a “Tropa de Elite II”, no Cine Arte Palace, mas, no meio da projeção, houve problemas na fita. A história assistida ali por, no máximo, meia dúzia de pessoas, foi interrompida, e tivemos o dinheiro de nossos ingressos devolvido… A cena da interrupção de um filme seria até corriqueira lá no Cine Brasil, no tempo em que os rolos nas latas demoravam a chegar de ônibus, e o público xingaria, mas se manteria fiel, esperando a próxima produção anunciada na loja da “dona Elza”.
Com a tecnologia, hoje, não há mais espaço para isso. Restam//-nos as memórias nostálgicas de tantos filmes que marcaram a nossa vida em cinemas que também eram apaixonantes e tinham histórias que envolviam gerações. Sem grandes redes de shoppings, as cidades pequenas, como Guarani, nunca mais tiveram oportunidades de ter um cinema. Quem dera o acesso à telona fosse para todos!!!
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Imagem principal:
Imagem: Fila na porta do Cine Veneza para mais uma sessão lotada exibindo o filme Titanic.
Fonte: Blog Maria do Resguardo